Na tarde de 30 de
setembro de 1897, uma cena inesquecível desdobrava-se na enfermaria do Carmelo
de Lisieux. Cercada de toda a comunidade ajoelhada em torno de seu leito de
dores, Santa Teresinha do Menino Jesus, fitando os olhos no crucifixo,
pronunciava suas últimas palavras nesta terra de exílio:
— Oh! eu O amo... Meu
Deus... eu... Vos amo!
Subitamente, seus
amortecidos olhos de agonizante recuperam vida e fixam-se num ponto abaixo da
imagem de Nossa Senhora. Seu rosto retoma a aparência juvenil de quando ela
gozava de plena saúde. Parecendo estar em êxtase, ela fecha os olhos e expira.
Um misterioso sorriso aflora-lhe aos lábios e aumenta a formosura de sua
fisionomia.
“Eu não morro, eu
entro na Vida”, havia ela escrito poucos meses antes.
Sua luz brilha no mundo inteiro
Talis
vita finis ita. – “Cada um morre como viveu.”
Sua morte, aos 24
anos, foi um reflexo de sua breve existência — uma vida de virtude heróica, de
amor a Deus e ao próximo levado a limites extremos, e de sofrimentos suportados
com uma radiante alegria e uma santa despretensão.
Quis ela passar
inteiramente despercebida neste mundo. E este seu desejo de vida oculta teria
sido realizado, se Deus não tivesse outros desígnios a esse respeito.
Por ordem das superioras,
a humilde carmelita escreveu seus famosos Manuscritos Autobiográficos —
“História de uma alma” — que tanto bem fizeram, fazem e farão ao longo dos
séculos, além de várias cartas, poesias e outros documentos registrados pela
História. E algumas irmãs de hábito que bem compreenderam sua extraordinária
virtude, tomaram nota das conversas tidas com ela nos seus últimos meses de
vida.
Graças a isso, a
chama acesa por Jesus na alma dessa Santa ilumina hoje o mundo inteiro. E nós
podemos, nas linhas abaixo, apreciar alguns “flashes” fulgurantes dessa luz.
* * *
Em abril de 1897,
quando a doença mortal entrava em sua última fase, sua irmã Paulina (em
religião, Madre Inês de Jesus) fez percebida neste mundo. E este seu de- a
primeira anotação em seu caderno:
“Quando somos
incompreendidas e julgadas desfavoravelmente, de que nos serve defender-nos ou
explicar-nos? É muito melhor não dizer nada e deixar que os outros nos julguem
como lhes agrada. Não vemos no Evangelho Maria explicando-se quando sua irmã a
acusou de ficar aos pés de Jesus sem fazer nada! Não, ela preferiu permanecer
em silêncio. Ó abençoado silêncio que dá tanta paz às almas!”
Trechos como este, de
conversas íntimas com a Santa, quase nos fazem esquecer que ela está passando
por sofrimentos físicos atrozes, incompreensões e, muito mais duro de suportar,
uma terrível provação espiritual, “a noite da Fé”.
* * *
Descrevendo essa
provação nos Manuscritos Autobiográficos, ela afirma:
“Jesus permitiu que
uma escuridão negra como boca de lobo varresse minha alma e deixasse o
pensamento do Céu, tão doce para mim desde a minha infância, destruir minha paz
e torturar-me...”
E em conversa com
suas irmãs acrescenta: “Minha alma está exilada, o Céu está fechado para mim e
do lado da terra tudo é provação também”.
Olhando pela janela
da enfermaria, viu um “buraco negro” no jardim e confidenciou à Madre
Superiora: “É num buraco como esse que eu me encontro, de corpo e alma. Oh!
sim, que trevas! Mas estou em paz dentro delas”.
No dia da partida
para a eternidade, pôde ela declarar com singela despretensão: “Oh, eu rezei fervorosamente
a Ele, mas estou realmente em agonia sem nenhuma mistura de consolação”.
* * *
Apesar de todos os
sofrimentos físicos e espirituais, ela iluminava com seu sorriso e aquecia com
sua caridade as demais religiosas do convento. Naquela enfermaria não se
respirava atmosfera de tristeza. Santa Teresinha não o permitia! Escreve sua
irmã Maria: “Quanto à força moral, é sempre a mesma coisa, a alegria em pessoa,
fazendo rir todos quantos dela se aproximam. Creio que ela morrerá rindo, de
tal forma ela é alegre!”
A Santa usava seu
vasto repertório de jogos de palavras, imitações de pessoas, ditos espirituosos
a respeito dela mesma e da incapacidade dos médicos — tudo para praticar a
caridade fraterna.
Sua alegria nada
tinha de inautêntico, de forjado. A Irmã Teresinha detestava o fingimento! No
entanto, ela se encontrava num tal extremo de padecimentos que chegou a dizer:
“Nunca eu teria acreditado que fosse possível sofrer tanto. Nunca! Nunca! Não
posso explicar isto, exceto pelos desejos ardentes que eu tive de salvar
almas”. E em outra ocasião: “Que seria de mim se Deus não me desse forças? Não
se tem idéia do que é sofrer tanto assim. Se eu não tivesse a Fé, eu teria me
dado a morte sem hesitar um só instante...”
Donde lhe vinha,
pois, tanta força e alegria? Da total aceitação da vontade de Deus — “o Papai
bom Deus”, dizia ela graciosamente.
* * *
Santa Teresinha tinha
um grande medo: o de desagradar, no mínimo que fosse, seu bem-amado Jesus.
Quanto ao resto, nada temia, muito menos a morte. Fazendo alusão ao ensinamento
do Evangelho: “a morte vem como um ladrão”, gracejava ela de forma encantadora:
“Diz-se no Evangelho que a morte virá como um ladrão. Oh! ele virá roubar-me
muito gentilmente. Como eu gostaria de ajudar este ladrão!”
E mais: “Não tenho
medo do ladrão. Eu o vejo à distância e tomo muito cuidado para não gritar:
‘Socorro, ladrão!’ Pelo contrário, eu o chamo dizendo: ‘Por aqui, por aqui!’”
Como explicar uma tal
serenidade diante da morte iminente, mais ainda, uma tal vontade de que ela se
apresse? Muito fácil. Pela confiança inabalável no amor misericordioso de
Jesus, e pelo ardente desejo de perder-se nesse Amor o mais cedo possível.
O amor à bondade e à misericórdia
Santa Teresinha foi
escolhida por Deus para ensinar um caminho de santificação a ser trilhado pelas
almas fracas — a “pequena via”, a via da Confiança por excelência.
Escreveu ela nos
Manuscritos: “Sempre desejei ser uma santa (...) O bom Deus não inspira desejos
irrealizáveis, eu posso, portanto, aspirar à santidade apesar de minha
pequenez. Tornar-me grande, é impossível. Devo, pois, suportar-me tal como sou,
com todas as minhas imperfeições, mas quero procurar um meio de ir ao Céu por
uma pequena via, bem reta, bem curta (...) Eu quereria encontrar um elevador
para subir até Jesus, porque sou pequena demais para escalar a áspera escada da
perfeição. (...) Ah! o elevador que me fará subir ao Céu são vossos próprios
braços, ó meu Jesus!”
Essa grande Santa
manteve intacta sua Inocência batismal, nunca manchou sua alma por um único
pecado grave sequer. É por este motivo que ela demonstrava tal confiança na
bondade do Divino Salvador?
Nem de longe! Nas
últimas frases dos Manuscritos, podemos ler esta confortadora mensagem, a qual
não deixa a menor dúvida de que a via da confiança está aberta inteiramente até
para os maiores pecadores:
“... mas, sobretudo,
imito a conduta de Maria Madalena. Sua admirável, ou melhor, sua amorosa
audácia encanta o Coração de Jesus, e seduz o meu. Sim, eu o sinto: mesmo se me
pesassem na consciência todos os pecados possíveis de cometer, eu iria, com o
coração partido de arrependimento, jogar-me nos braços de Jesus, pois sei
quanto Ele ama o filho pródigo que vem Lhe pedir perdão. Não é porque o bom
Deus, em sua previdente misericórdia, preservou minha alma do pecado mortal que
eu me elevo a Ele pela confiança e pelo amor.”
E já nos últimos dias
de sua vida terrena, exclama:
“Oh! como sou feliz
por me ver imperfeita e por ter tanta necessidade da misericórdia do bom Deus
no momento da morte!”
Deixar-se carregar
por Jesus, por Maria Santíssima, no caminho da santidade... Sentir-se feliz por
ser fraco e ter necessidade da misericórdia e da bondade de Deus... Eis o
caminho curto e seguro indicado por Santa Teresinha — Doutora da Igreja,
note-se! — para os católicos de nossos dias, homens e mulheres, de todas as
idades e condições sociais.
Ninguém tem pretexto para não desejar a santidade
O preceito do Divino
Mestre, “sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”, é dirigido à
humanidade inteira. O que para qualquer ser humano é impossível, Ele tornou
possível até para os mais débeis, pelos méritos infinitos de sua Paixão e Morte
na Cruz. As miríades de Santos do Céu dão testemunho dessa verdade consoladora.
Santa Teresinha,
porém, vai mais longe. Além de nos ensinar pela doutrina e pelo exemplo, ela se
põe à nossa disposição, como se pode ver nas palavras ditas a suas irmãs de
Vocação no dia 17 de julho, menos de três meses antes de subir ao Céu:
“Sobretudo, sinto que
minha missão vai começar, minha missão de fazer amar o bom Deus como eu O amo,
de comunicar às almas minha “pequena via”. Se o Bom Deus realiza meus desejos,
meu Céu se passará sobre a terra até o fim do mundo. Sim, quero passar meu Céu
fazendo bem à terra.”
“... minha missão de
fazer amar o bom Deus como eu O amo”. — Então, que ela cumpra em cada um de
nós, leitor, sua sublime lição! Peçamos esta graça com toda confiança.
Revista Arautos do Evangelho n.33 set. 2004
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